terça-feira, 17 de junho de 2008

O Outro Canto de Baile


Há mais ou menos 10 anos atrás, senti resistência em ler Nietzsche, sentia mesmo, assim como em Fiodor Dostoiévski ainda hoje tenho cautela; afinal de contas não é qualquer leitura, algo que saia pelo fiofó[expressão infame]. Nada mais natural que perceber que esta resistência por Nietzsche se dava por saber encontrar-se nele uma leitura um tanto mais profunda e desafiadora, provocadora e de certa forma impiedosa. Ler Nietzsche é desafiar-se neutro, aprender sobretudo a ser ouvinte. É acordar para certas visões e compreender, por leituras as vezes malcriadas do erudito que era, quais caminhos a nossa cultura camuflada de chapelzinho fez-nos, enquanto humanidade mesmo, trilhar. Ser humano além do bem e do mal deve mesmo ser algo além do terreno, por que por mais que não sejamos maniqueísta, acabamos por força de nossa cultura milenarmente castrante, julgando tudo sob uma ótica parcial e descartando nossas próprias idéias por nos inquirirmos inadvertidas vezes ao pendão da moral impregnada de interesses que não nos dizem respeito enquanto 'conjunto' que quer melhorar[ufa].
Recomendo Nietzsch àqueles que precisam daquele bofetão quase cruzado-de-esquerda-nocaute-técnico inicial, para que deixe de tanta platonisse e de tanto Aguastinho. Quem sabe... se não houvesse tanta aura em torno do legado nietzcheano, talvez tivéssemos bem menos Galaxiais do Queijo-do-Reino do Grão de Areia. E ouvir o créu seria como ir num circo medieval para ver freakshows; a nossa necessária curiosidade humana, por procurar compreender o que não conseguimos referência. Tzzzc tzzzc! Pega no tranco cérebro preguiçoso[tapa]. Quando falo isso lembro logo de um Sílvio Luiz e o seu emblemático "Tá lá o corpo estendido no chão", e de toda gente que não entende que quando alguém passa mal precisa respirar. "A humanidade é desumana" e o Renato Russo, que na verdade era brasileiro, acreditava que tem jeito. Eu sinceramente acredito que tem jeito pra poucos, e por isso mesmo temos que cantar nossas legiões, sejam novaiorquinas ou sertanejas, em meio a espigões de pedra ou espinhos de cactos.
Nietzsche era multifacetado enquanto criador, não só dando tapas como os que comentei, ele também tem seus lampejos poéticos e até mesmo musicais. Pensando que nem todo mundo conhece o legado, cito aqui parte/trecho de um texto do cabra que traçou a genealogia da moral. Eu particularmente gosto desse trecho do Assim Falava Zaratustra, e espero que se deliciem[ui].

Abraços e algo mais a quem for de algo mais.

Segue abaixo o texto:




“Acabo de te olhar nos olhos, vida; vi reluzir ouro nos teus olhos noturnos, e essa volutuosidade paralisou-me o coração: vi brilhar uma barca dourada que se submergia em águas noturnas, uma barca dourada que se submergia e reaparecia fazendo sinais!

Tu dirigias um olhar aos meus pés, doidos por dançar, um olhar acariciador, terno, risonho e interrogador,

Duas vezes apenas agitaste com as mãos as tuas castanholas, e já os pés me pulavam, ébrios.

Os calcanhares erguiam-se; os dedos escutavam para te compreender; não tem o dançarino os ouvidos nos dedos dos pés?

Saltei ao teu encontro; tu retrocedeste ao meu impulso, e até a mim serpeava a tua voadora e fugidia cabeleira.

Num pulo me afastei de ti e das tuas serpentes: já tu te erguias com os olhos cheios de desejos.

Com lânguidos olhares me mostras sendas tortuosas; por tortuosas sendas aprende astúcias o meu pé.

Receio-te quando te aproximas, amo-te quando estás longe; a tua fuga atrai-me; as tuas diligências detêm-me. Sofro; mas, por ti, que não sofreria eu?

Ó! tu, cuja frialdade incendeia, cujo ódio seduz, cuja fuga prende, cujos enganos comovem!

Quem te não odiará, grande carcereira, sedutora, esquadrinhadora e descobridora! Quem te não amará, inocente, impaciente, arrebatadora pecadora de olhos infantis!

Aonde me arrastas agora, indômito prodígio? E já me tornas a fugir, doce esquiva, doce ingrata!

Dançando sigo as tuas menores pisadas. Onde estás? Dá-me a mão! Ou um dedo sequer!

Há por aí cavernas e bosques; extraviar-nos-emos. Pára! Detém-te! Não vês revoarem corujas e morcegos?

Eh! lá, coruja! Morcego! Quereis brincar comigo? Onde estamos? Com os cães aprendestes a uivar e a rosnar.

Mostravas-me graciosamente os brandos dentes, e os teus malvados olhos asseteavam-me por entre as frisadas madeixas.

Que correria por montes e vales! Eu sou o caçador; queres tu ser o meu cão?

Agora, a meu lado! e depressa, invejável solitária! Acima agora! Ó! Ao voltar, caí.

Olha como estou aqui estendido! Olha, altaneira, como imploro o teu socorro! Quereria continuar contigo... por caminhos mais agradáveis! pelos caminhos do amor, através de esmaltados bosques! ou pelos que marginam o lago, onde nadam e saltam dourados peixes!

Estás cansada, agora? Ali em baixo há ovelhas e vespertinos arrebois. Não é tão bom adormecer ao som da flauta dos pastores?

Então, estás assim cansada? Vou-te levar lá; ao menos deixa pender os braços. E tens sede?... Poderia dar-te qualquer coisa... Mas a tua boca não quer beber.

Que maldita serpente esta! feiticeira fugidia, veloz e ágil. Aonde te meteste? Sinto na cara dois sinais da tua mão, dois sinais vermelhos!

Estou deveras farto de te seguir sempre como ingênuo cordeirinho! Feiticeira, até agora cantei para ti: agora, para mim deves tu... gritar!

Deves dançar e gritar ao compasso de meu látego!

Esquecê-lo-ia eu? Não!”


Para quem se interessar esta aqui "O Outro Canto de Baile" completo e um link para Livro todo (Assim Falava Zaratustra em PDF, ou ainda na web em html - de Friedrich Nietzsche)

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